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Em 1982, por ocasião de uma viagem de estudos organizada pela Escola Técnica Superior de Arquitectura de Sevilha, visitei Barcelona pela primeira vez. Eram 23h00 quando o nosso autocarro se deteve nas Ramblas. Recordo perfeitamente a lúgubre impressão que me produziu a Cidade Condal. Prostitutas e traficantes deambulavam por ruas ladeadas de estabelecimentos comerciais decadentes, muitos deles com o letreiro de “trespassa-se” pendurado na porta. Naquele momento, este estudante do terceiro ano de Arquitectura chegou a uma conclusão pouco original: Barcelona atravessava um mau momento. 

Assim era, a Crise do Petróleo de 1974 havia-se abatido com especial virulência sobre a cidade. O tecido fabril da zona de Poble Nou, jóia da coroa da Revolução Industrial catalã, estava arruinado, votando ao abandono, sem trabalho e sem futuro, dezenas de milhares de pessoas. 

Actualmente, situações similares às que vi naquela Barcelona de 1982 (as mesmas prostitutas, os mesmos traficantes, os mesmos estabelecimentos decadentes...) repetem-se por toda a parte em cidades como Londres ou Nova Iorque. A miséria inunda as ruas de Brixton, do Bronx, de Queens... Contudo, se alguém reproduzisse a associação que eu fiz há 27 anos (pobreza urbana = penúria económica) equivocar-se-ia. Londres e Nova Iorque não estão em crise, pelo contrário, são duas estrelas que bri-lham com especial intensidade na constelação das cidades globais. Paradoxal? De todo, uma vez que a injustiça social faz parte do código genético do tardo-capitalismo. 

 

A "TOPOGRAFIA DO MEDO"

 

Como assinala Saskia Sassen1 , a polarização é intrínseca à ordem económica contemporânea, onde os trabalhos de baixo nível salarial são a chave do crescimento. Que seria de Chicago sem os milhares de mexicanos que se ocupam da limpeza, da segurança ou das tarefas domésticas? Que seria de Paris sem os milhares de magrebinos que se ocupam dos jardins, das lavandarias ou dos supermercados? Apesar da pujança das suas respectivas cidades e de o seu trabalho ser essencial para o seu funcionamento, a maioria deles vive amontoada em apartamentos imundos de bairros ultra--degradados. O declínio social deixou de ser um indicativo de decadência para se converter num complemento do desenvolvimento, o que converte o tardo-capitalismo numa das fases mais perversas do sistema económico ocidental. 

Foi a radical transformação experimentada pelo mercado laboral nas últimas décadas que instalou a lógica de desigualdade na cidade contemporânea. Para a maioria, pressupôs o desaparecimento da estabilidade no emprego e o consequente aumento das subcontratações, do trabalho informal, do trabalho a tempo parcial... e da pobreza. Para uns poucos pressupôs a oportunidade de aceder a cargos excepcionalmente bem remunerados. Os primeiros, trabalhadores de escassa qualificação, aglomeram-se em três sectores: a indústria de baixo nível, os labores rotineiros de escritório e os serviços não especializados. Os segundos, profissionais altamente qualificados, concentram-se no sector financeiro. A conjunção de uns e ou-tros fez disparar a polarização social: se entre 1945 e 1975, nove em cada dez salários norte-americanos eram de nível médio, hoje são-no cinco em cada dez. 

Los Angeles é um bom exemplo da lógica envenenada que se instalou nas cidades contemporâneas. Na década de 1980, empreendeu um radical processo de reconversão económica que pretendia convertê-la no elo de ligação dos Estados Unidos com os florescentes estados do Extremo Oriente. Em poucos anos, a sua aposta pelo Pacific Rim traduziu-se na cria-ção de um milhão e trezentos mil empregos, o que transformou o sul da
Califórnia na nova força locomotora do país. A substancial reforma do mercado laboral que implicou esta estratégia fez disparar exponencialmente a desigualdade social. Nessa década gloriosa, de crescimento económico ininterrupto, o número de ricos triplicou (passando de nove para 26 por cento da população); os pobres cresceram um terço (de 30 para 40 por cento); e a classe média sofreu um anoréctico emagrecimento (de 61 para 26 por cento). 

Estes actores sociais tão diversos confluem na relativamente reduzida envolvente espacial das nossas cidades, onde se vêem obrigados a convi-ver os dois extremos do amplo arco social tardo-capitalista. Os subúrbios revelam que as urbes contemporâneas são zonas não só ultrafragmentadas do ponto de vista social e étnico, mas também das mais conflituosas da história. Taxas de criminalidade sem precedentes, revoltas raciais desco-nhecidas desde os anos de 1960... Tudo isso gerou a denominada “topografia do medo”, fruto da obsessão da sociedade contemporânea pela segurança e pelo controlo, do seu convencimento de que é necessário proteger os enclaves urbanos onde reside e por onde deambula entre muros, barreiras, seguranças e sofisticados sistemas de detecção electrónica.

 

O FIM DO CLÁSSICO

 

Em 1984, Peter Eisenman escreveu “O Fim do Clássico: o Fim do Começo, o Fim do Fim”. Este artigo foi, na altura, emblemático para a teoria da arquitectura, que se despedira dos postulados do Movimento Mo-derno e se prestava a indagar as consequências que, para a disciplina, haveriam de resultar do novo paradigma económico. No seu artigo, Eisenman reclamava uma arquitectura “não-clássica”, baseada no fim das três supostas ficções (a da representação, a da razão e a da história) sobre as que se havia edificado a teoria da arquitectura desde o Renascimento até ao Movimento Moderno, ambos inclusive. 

O fim do clássico que Eisenman reclamava para a arquitectura, também se transferiu para a cidade e para o urbanismo. A polis grega, origem primigénia da cidade ocidental, baseou-se em três princípios:

1. a continuidade do tecido urbano, onde não cabia estabelecer zonas fechadas reservadas a classes privilegiadas;

2. a implantação de três tipos de espaços: o privado, o sagrado e, grande novidade histórica, o público;

3. a investidura do estado como regulador desses três espaços.

Na cidade contemporânea, o fim do clássico pressupõe a entrada em crise destes três princípios, ou seja, o fim da continuidade, o fim do espaço público e o fim do urbanismo. Isso é especialmente evidente nas metrópoles norte-americanas, que são filhas de uma condição de contemporaneidade quimicamente pura: da sociedade pós-moderna, das tecnologias de informação, do ultraliberalismo económico... Neste artigo iremos centrar-nos nelas.

O fim da continuidade do tecido urbano é uma das principais ca-racterísticas da topografia do medo. Um dos seus múltiplos subprodutos é as denominadas “comunidades fechadas”, enclaves cujos serviços e espaços públicos estão consagrados ao uso exclusivo dos seus acomodados residen-tes. Elas são as protagonistas daquilo que Mike Davis denominou “o arquipélago carcerário”2, i. e., a transformação do espaço urbano nu-ma sucessão de ilhas
fortificadas, num território fragmentado numa infinidade de enclaves amuralhados. Vistas do ar, Houston, Dallas ou Miami as-semelham-se a agregações de grumos edificados. O que os rodeia é uma mescla de naturezas domesticadas e selvagens: campos de golfe, espaços naturais, resíduos agrícolas, terrenos abandonados... a que se somam os jardins das habitações unifamiliares das communities. 

Também a crise do espaço público está intimamente relacionada com a topografia do medo. Trevor Boddy3 analisou o fenómeno das ligações pedonais aéreas e subterrâneas que, na década de 1980, invadiram os centros das cidades norte-americanas. Inicialmente, esta rede de passagens superiores e túneis que conectavam hotéis com estações de caminhos-de--ferro, torres de escritórios com centros comerciais, estações de metro com estabelecimentos de lazer... foi justificada como resposta às inclemências climáticas de cidades como Minneapolis, Calgary ou Montreal. O tempo, contudo, viria a demonstrar que a sua proliferação respondia à psicose da sociedade contemporânea com a segurança. Estas estruturas estendiam ao espaço público os sistemas de controlo utilizados no privado, o que permitia aos “cidadãos de bem” mover-se pelos centros urbanos sem necessidade de pisar as suas ruas e praças, i. e., sem necessidade de entrar em contacto com a pobreza, a delinquência, a marginalidade...

Por último, o desmantelamento do papel regulador do estado é perfeitamente perceptível a nível global. Começou com a crise do petróleo, quando a irrupção da pobreza e a obsolescência funcional nas cidades converteu o crescimento urbano em algo que havia que fomentar e não controlar (como o entendeu o urbanismo moderno). Os promotores privados exigiam flexibilidade e rápidas tomadas de decisão, algo também incompatível com os planos gerais dos anos de 1960 e os seus objectivos a longo prazo. Acusados de burocráticos e anacrónicos, assim começou o seu descrédito. Na década seguinte muitas administrações públicas decidiram pô-los de parte e dedicar-se a apoiar o crescimento urbano de qualquer maneira. Irrompia, assim, o que Peter Hall4 denominou “cidade dos promotores”. A desregulação tardo-capitalista chegara ao urbanismo.

Como consequência, na definição da cidade contemporânea os planos urbanísticos têm cada vez menos peso em benefício da arquitectura, mais concretamente de uma arquitectura-espectáculo, suportada pela assina-tura de grandes estrelas mediáticas. A Europa é um bom exemplo disso. Embora nunca se tenha reconhecido, Barcelona não confiou a reorientação funcional da Plaça de les Glóries a um plano especial, mas sim à Torre AgBar; Paris não confiou a regeneração das zonas degradadas da margem esquerda do Sena a um plano parcial, mas sim à Biblioteca de França; Bilbau não confiou a sua reorientação económica para o sector terciário a um plano estratégico, mas sim ao Museu Guggenheim; e Berlim não confiou a sua metamorfose em capital da Alemanha reunificada a um plano geral, mas sim aos arranha-céus e centros comerciais das Potsdamer Platz, Pari-ser Platz e Friedrichstraße.

Por detrás das importantíssimas transformações urbanas experimentadas por estas capitais nas últimas décadas não estão os urbanistas, mas a assinatura de arquitectos como Frank Ghery, Jean Nouvel, Daniel Libeskind, Rem Koolhaas ou Herzog & de Meuron. As cidades que construíram assemelham-se a uma colecção de obras de arte, são um produto estético altamente sofisticado onde cada vez têm mais importância os livros de estilo que definem caixotes de lixo, pavimentos, candeeiros e quiosques, e cada vez menos as considerações sociais. Estas não interessam à arquitectura-espectáculo, o que não deixa de ser um grande paradoxo, já que, como comentámos, a globalização gerou nas cidades um grau de polarização social desconhecido no Ocidente desde a Segunda Guerra Mundial. 

 

CELEBRATION: O FIM DA CIDADE, O FIM DO CIDADÃO

 

O fim da continuidade, o fim do espaço público e o fim do urbanismo colocam em crise o próprio conceito de “cidade”, pelo menos tal como o Ocidente a vem concebendo desde há mais de 2000 anos. 

Entre as 12h30 e as 13h30 (plena hora de ponta nos centros de cidades como Lisboa ou Paris) as avenidas do downtown de Houston estão desertas: ninguém caminha pelos seus passeios, ninguém atravessa as suas ruas. Onde estão as pessoas? No subsolo, num sistema de túneis de dez quilómetros de comprimento que interliga mais de 2,6 milhões de metros quadrados de escritórios. As “praças” desta rede são os átrios situados nas caves dos arranha-céus, onde se concentram os restaurantes, as cafetarias, o comércio... ou seja, todas as funções que na cidade tradicional geraram vida urbana, e que Houston reproduz à cota -5. 

O fim da continuidade, o fim do espaço público e o fim do urbanismo também põem em crise o conceito de “cidadão”. O discorrer quotidiano de um houstoniano consiste em passar do interior climatizado de sua casa ao interior climatizado do seu automóvel, do interior climatizado da garagem ao interior climatizado dos túneis, do interior climatizado dos átrios ao interior climatizado do escritório e vice-versa. A envolvente urbana ficou reduzida a duas escalas contrapostas mas complementares: a territorial da auto-estrada e a doméstica do edifício. Entre ambas não há quase nada.

Numa carta dirigida ao director de uma revista, um empresário de San Diego descrevia o lugar para onde gostaria de se mudar com a família: “[...] deve ter uma main street ladeada de árvores, e comércio e serviços aos quais continue a acorrer a população local; deve existir um parque para concertos estivais onde os idosos possam reunir-se nos bancos a mexericar e a ver passar o tempo; quatro estações (sem nada de excessivo) [...] Quero viver num lugar onde as pessoas se preocupem com a sua comunidade, com as suas famílias, com os outros e com o seu país. Num ambiente onde haja espaço para as crianças brincarem e crescerem. Um sítio onde as pessoas se cumprimentem na rua, onde conheçamos o polícia municipal, o vendedor, o carteiro, o padre, o médico, o veterinário e o presidente da Câmara.”5 

Os promotores das comunidades fechadas estão conscientes do filão económico que se esconde debaixo da ânsia de significados que este empresário compartilha com os milhões de pessoas que transitam pela topografia do medo. No início dos anos de 1990 podia ler-se no anúncio de uma delas: “Era uma vez um lugar onde as pessoas cumprimentavam os vizinhos na quietude do entardecer estival. Onde as crianças caçavam pirilampos. [...] Aos sábados, o cinema passava desenhos animados. A mercearia entregava as compras em casa. […] Lembra-se desse sítio? […] Tinha algo de mágico. A magia especial da cidade americana.”6 

O lugar em questão chama-se Celebration, uma community composta por 8000 habitações unifamiliares e onde habitam 20 mil pessoas (tamanho considerado óptimo para que a ilusão da “cidade americana” possa reproduzir-se). Os seus edifícios “públicos” foram desenhados por um rosário de arquitectos-estrela: Philip Johnson, Robert Venturi, Michael Graves, Charles Moore, Aldo Rossi... O fim da continuidade, o fim do espaço público e o fim do urbanismo encontram o seu epítome em lugares como este.

O fim do urbanismo, porque Celebration foi promovida pela Disney Corporation e pela AT&T; a sua gestão e a sua planificação estão nas mãos dessas duas multinacionais. O fim do espaço público, porque, ainda que em Celebration abundem os passeios, as pracetas, os cinemas, os bancos, etc., nenhum cidadão alheio à community pode pisar a sua main street, o seu templo presbiteriano, a sua sinagoga, os seus dois campos de golfe ou a sua escola infantil (com planos de estudo elaborados pela Universidade de Harvard). E o fim da continuidade porque Celebration es-tá situada na Florida (a poucos quilómetros de Orlando). Faz parte, e alimenta, um estado “pós-urbano” onde natureza e cidade se fundem num todo indiferenciado, um território infestado de centros; um território sem limites, sem hierarquia, quase sem forma; um território descontínuo e fragmentado; um território sem história nem identidade; um território sem densidade, mas onde habitam milhões de pessoas... Numa envolvente semelhante não faz sentido falar de dualidades tais como “centro/periferia”, “campo/cidade”, “espaço público/espaço privado”... já que não lhe são aplicáveis os parâmetros pelos quais tradicionalmente filtramos os factos urbanos. 

Como dissemos, é o fim da cidade, mas também o fim do cidadão. Alguém definiu Celebration como “o parque humano da Disney”, uma espécie de parque temático residencial. O anexo à escritura que tem de assinar qual-quer pessoa que adquira um lote (denominado Covenants Conditions and Restrictions), tem mais de 100 páginas. Obriga a optar entre seis mode-los de casa: “clássico”, “vitoriano”, “colonial”, “costeiro”, “mediterrâneo” ou “francês”. Como se isto não bastasse, um sem fim de cláusulas controla as cores, os materiais e as texturas. Também prescreve o que se pode plantar no jardim, onde se pode estacionar no lote, quando se pode revender a casa e a obrigação de nela residir pelo menos nove meses por ano.

Por último, as cortinas de cor são proibidas...


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1 Saskia Sassen. The global city: New York, London, Tokyo. Princeton : Princeton University Press, 1991, p. 10. 

2 Mike Davis. Fortress Los Angeles: the militarization of urban space. In Michael Sorkin, ed. Variations on a theme park. The new American city and the end of public space. New York : Hill and Wang, 1992, p. 154-180.

3 Trevor Boddy. Underground and overhead: building the analogous city. In Michael Sorkin, ed. Op. cit., p. 123-153.

4 Peter Hall. Cities of Tomorrow: an intellectual history of urban planning and design in the twentieth century. Oxford : Blackwell Publishers, 1988.

5 Apud Nan Ellin. Postmodern urbanism. New York : Princeton Architectural Press, 1996, p. 135.

6 Apud Dolores Hayden. Building suburbia: Green fields and urban growth, 1820-2000. New York : Pantheon Books, 2003, p. 213-214.


 

 

 


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